Cantinho da Helô

Sunday, October 01, 2006

Morte e morte de uma bibliotecária

Marli morreu aos poucos, bem devagarinho. Pobre criaturinha medíocre! Partiu deste mundo sem sequer se dar conta do quão sem graça foi a sua existência.
Durante 37 anos, ela empurrou sua vida com a barriga. Nunca correu riscos. Precavida, levava sempre seu inseparável guarda-chuva preto, já cinzento pelo desbotamento, embaixo do braço. Nunca saiu depois das oito da noite. Nunca sustentou um romance.
Esta mulherzinha, de aparência franzina e bochechas flácidas, me irritou desde a primeira vez em que pus meus olhos em sua figura. Parecia um urubuzinho esquelético e faminto. Faminto pela vida alheia. Marli trabalhava na biblioteca municipal há 15 anos. Desde o primeiro dia, tive ganas de matá-la.
Não porque tivesse uma aparência detestável. Não pelo seu cabelo gosmento de gomalina. Não pelo cheiro naftalínico que exalava. Mas sim, pela sua mania de meter o nariz aquilino na vida de todos.
Como pessoa discreta e reservada que sempre fui, não tolerei ao vê-la mexericando em minha privacidade. Tratei logo de arquitetar este plano. Sabia o que tinha que ser feito, e passei a respeitar o dia-a-dia metódico da moça, para não levantar suspeitas.
Por fim, descobri tudo a seu respeito. Dos banhos frios às cinco da manhã às meias de nylon inglesas que usava. Do papagaio velho que era seu único companheiro ao café puro, forte, quase frio e sem açúcar que tomava após o expediente, precisamente às 6:45 da tarde, na cozinha da biblioteca, quando o faxineiro já havia ido embora.
Foi desta forma que decidi agir. Numa quarta-feira, invadi a cozinha da biblioteca pela janela, e coloquei cianureto no café de Marli, enquanto ela esperava esfriar. Ela nem mesmo notou.
Depois, foi só observar a vagarosa agonia da insípida senhorita. Fiquei olhando do mezzanino. Marli passou mal minutos após tomar o negro líquido, já em sua mesa. Ao sentir o primeiro transtorno do mal-estar, levou a mão ao peito. Suas pernas tremeram, e então ela veio ao chão. Nem tentou gritar, porque não tinha a quem chamar. Apenas esperou, como fez durante toda sua vida, entre um espasmo e outro de seu corpo moribundo. Não sabia porque morria, mas apenas permitia.
Duas horas e meia depois, deu o último suspiro.

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