Cantinho da Helô

Wednesday, May 03, 2006

Monsier M.


Malabarr era um mago da cozinha. Em seu restaurante, sempre lotado, maravilhas coloridas eram preparadas em grande escala. Seu tempero era conhecido nos cinco cantos de seu país, e já chegava a outros condados. Ninguém acreditava no paladar soberbo de tão doces delícias.

Calamares flambados, lulas avinagradas, vieiras agridoces e lagostas ao dendê eram uma de suas especialidades. O segredo do sabor era de grande mistério. A identidade de seu chef, também.

Na verdade, Malabarr havia sido um grande químico e cientista, que durante muito anos, pesquisou e pesquisou à exaustão a descoberta de um famoso antídoto para o Mal de Lebrexau, uma terrível virose que afetava a terra de Santucer. Após dedicar 35 anos de sua juventude à erradicação da doença, Malabarr entregou os pontos quando sua esposa e filhos foram acometidos pelo mal e vieram a falecer. O golpe de misericórdia aconteceu quando Arribanor, seu pupilo, roubou seus estudos, e sozinho, conseguiu o milagroso soro, desbancando o legado de Cientista–Mor autorgado à Malabarr pelo Gran-Embaixador de Santucer.

Desacreditado, Malabarr cruzou o continente, e após 8 mil Km, chegou ao distrito de Alcora, uma vila margeada por um mar cor de turquesa. Com suas economias, comprou um modesto casebre de dois andares, aonde residia e trabalhava. Optou mudar radicalmente de profissão. Pensou: o que fazer com meus conhecimentos tão apurados? A opção pela gastronomia se deu pelo fato de que o local tinha uma rica fauna marinha e grandes florestas aonde podia coletar os temperos silvestres, que muitos desconhecinham. Por conhecer as propriedades estruturais de qualquer elemento, foi fácil para Malabarr desenvolver iguarias únicas, o que levou seu pequeno restaurante costeiro a virar uma sensação.

Entretanto, a figura de Malabarr se tornou uma incógnita. Para não se expor, o mago criou o codinome de Monsier M. e usava uma máscara de pássaro diariamente, para que ninguém reconhecesse sua face. Depois da vergonha e desgostos sofridos em Santucer, Malabarr não queria correr o risco de ser reconhecido por ninguém, principalmente depois que seu negócio começou a gerar frutos e trazer convidados de seu estado natal. Mitos acolhiam a imagem de Malabarr. Muitos comentavam que ele não exibia sua face pq era deformado. Outros, porque se tratava de um grande fugitivo. Boatos e mais boatos surgiam e eram reforçados a cada dia.

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Numa ocasião, Malabarr, para seu espanto, chegou a receber e servivir seu desafeto Arribanor, que veio a Alcora atrás dos quitutes do conhecido Monsier M. Desconcertado, porém comedido, o mago manteve a calma e fez a vez de anfitrião com afinco. No entanto, ao fechar o estabelecimento e recolher-se ao quarto de dormir, matutou sobre a possibilidade de uma pequena vingança, pois agora tinha a melhor das oportunidades.
Naquela noite, não conseguiu dormir. Foi para o pequeno deque da enseada e fumou um cachimbo aromático. Quando retornou à casa, já eram seis horas da manhã e sua cabeça estava cheia de idéias. Correu para a cozinha e resolveu elaborar o melhor quitute de todos os tempos, para o seu mais precioso cliente.

A decisão estava tomada. Iria encantar Arribanor. Iria deixa-lo tão vulnerável aos seus caprichos de uma forma que ninguém, nem o próprio, descobriria. Já tinha as ervas certas e a fórmula adequada. O jeito era adaptá-la a um aprazível consumo. Resolveu-se por torná-la doce, posto que o açúcar disfarçava até o maior dos gostos féis. Juntou farinha, leite de coco, ovos, açúcar, ervas azuis da colina de Valmon, cacau fresco e salmoras de tumg-tom. Voilá! Não ousou experimentá-lo, mas já sabia estar celestial. Enfeitou o prato com capricho e o guardou muito bem guardado para àquela tarde.

Abriu a casa, como de costume. O expediente correu normal. Por volta das 5 da tarde, chegou Arribanor.

Sentou-se numa mesa na varanda, que era mais fresco e podia-se olhar o mar. Comeu de entrada sopa de vôngoles, depois uma salada de pitus cor-de-rosa, com acelga, aipo, pimentão amarelo e creme de ricota. Deliciou-se com uma lula flambada em vinagrete com endívias frescas. Tomou do melhor vinho da casa. Por fim, a sobremesa. O chef antecipou-se ao cliente e trouxe o acepipe. “Cortesia da casa, para um cliente tão fiel” – disse Malabarr.

Arribanor sorriu. Nunca recusaria um doce, quanto mais um vindo de Monsier M. Pegou a colher e já na primeira garfada sentiu a primazia do sabor. Comeu-o em dois tempos, e refestelou-se do paladar.

Parabenizou o chef, que o convidou para uma volta pela orla. Já era noite. Em Alcora, o dia dormia cedo e por volta das seis hora, as estrelas mais lindas podiam ser vislumbradas.
Malabarr estava ansioso. Mas tentou manter a calma. Não falaria nada até estarem bem afastados de qualquer presença humana. Pelo caminho, Arribanor só falava nas delícias da cidade, paisagens, senhoritas e a culinária de Monsier.

Quando já chegavam perto das pedras no fim da praia da Lua Clara, Malabarr parou. Pediu que o ex-pupilo parasse, e este obedeceu. Daí por diante, foi uma sucessão de desabafos, tão grandes, mas tão grandes, que não caberiam neste conto.

Falou sobre traição, frustação, decepção e fuga. Sobre os 8 mil quilômetros de estrada e da mais quilométrica agonia que sentia. Dicertou sobre Alcora e sua singularidade bucólica, sobre solidão e libertação. Até que falou na troca.

Sim, Malabarr decidiu trocar de lugar com Arribanor. Adorava sua vida de chefe, mas nada se comparava a sua vida de Mago. E como ninguém nunca tinha visto seu rosto, seria perfeito.
Trocaram as roupas, Arribanor colocou a máscara. Malabarr, que já tinha tudo planejado, lorgou seus bens mais preciosos embaixo da pontezinha que saía da cidade.

Instruiu o enfeitçado de que agora ele seria Monsier M., homem sem passado, chef do melhor dentre os melhores restarantes de todo o continente. Só tiraria a máscara quando não houvesse ninguém. Não lembraria mais de seu passado além da vida em Alcora.

E quando Arribanor, fantasiado, se foi, Malabarr pegou a estradinha. Tinha toda uma vida para recuperar, e oito mil km para retornar.

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