Monsier M.
Malabarr era um mago da cozinha. Em seu restaurante, sempre lotado, maravilhas coloridas eram preparadas em grande escala. Seu tempero era conhecido nos cinco cantos de seu país, e já chegava a outros condados. Ninguém acreditava no paladar soberbo de tão doces delícias.
Calamares flambados, lulas avinagradas, vieiras agridoces e lagostas ao dendê eram uma de suas especialidades. O segredo do sabor era de grande mistério. A identidade de seu chef, também.
Na verdade, Malabarr havia sido um grande químico e cientista, que durante muito anos, pesquisou e pesquisou à exaustão a descoberta de um famoso antídoto para o Mal de Lebrexau, uma terrível virose que afetava a terra de Santucer. Após dedicar 35 anos de sua juventude à erradicação da doença, Malabarr entregou os pontos quando sua esposa e filhos foram acometidos pelo mal e vieram a falecer. O golpe de misericórdia aconteceu quando Arribanor, seu pupilo, roubou seus estudos, e sozinho, conseguiu o milagroso soro, desbancando o legado de Cientista–Mor autorgado à Malabarr pelo Gran-Embaixador de Santucer.
Desacreditado, Malabarr cruzou o continente, e após 8 mil Km, chegou ao distrito de Alcora, uma vila margeada por um mar cor de turquesa. Com suas economias, comprou um modesto casebre de dois andares, aonde residia e trabalhava. Optou mudar radicalmente de profissão. Pensou: o que fazer com meus conhecimentos tão apurados? A opção pela gastronomia se deu pelo fato de que o local tinha uma rica fauna marinha e grandes florestas aonde podia coletar os temperos silvestres, que muitos desconhecinham. Por conhecer as propriedades estruturais de qualquer elemento, foi fácil para Malabarr desenvolver iguarias únicas, o que levou seu pequeno restaurante costeiro a virar uma sensação.
Entretanto, a figura de Malabarr se tornou uma incógnita. Para não se expor, o mago criou o codinome de Monsier M. e usava uma máscara de pássaro diariamente, para que ninguém reconhecesse sua face. Depois da vergonha e desgostos sofridos em Santucer, Malabarr não queria correr o risco de ser reconhecido por ninguém, principalmente depois que seu negócio começou a gerar frutos e trazer convidados de seu estado natal. Mitos acolhiam a imagem de Malabarr. Muitos comentavam que ele não exibia sua face pq era deformado. Outros, porque se tratava de um grande fugitivo. Boatos e mais boatos surgiam e eram reforçados a cada dia.
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Numa ocasião, Malabarr, para seu espanto, chegou a receber e servivir seu desafeto Arribanor, que veio a Alcora atrás dos quitutes do conhecido Monsier M. Desconcertado, porém comedido, o mago manteve a calma e fez a vez de anfitrião com afinco. No entanto, ao fechar o estabelecimento e recolher-se ao quarto de dormir, matutou sobre a possibilidade de uma pequena vingança, pois agora tinha a melhor das oportunidades.
Naquela noite, não conseguiu dormir. Foi para o pequeno deque da enseada e fumou um cachimbo aromático. Quando retornou à casa, já eram seis horas da manhã e sua cabeça estava cheia de idéias. Correu para a cozinha e resolveu elaborar o melhor quitute de todos os tempos, para o seu mais precioso cliente.
A decisão estava tomada. Iria encantar Arribanor. Iria deixa-lo tão vulnerável aos seus caprichos de uma forma que ninguém, nem o próprio, descobriria. Já tinha as ervas certas e a fórmula adequada. O jeito era adaptá-la a um aprazível consumo. Resolveu-se por torná-la doce, posto que o açúcar disfarçava até o maior dos gostos féis. Juntou farinha, leite de coco, ovos, açúcar, ervas azuis da colina de Valmon, cacau fresco e salmoras de tumg-tom. Voilá! Não ousou experimentá-lo, mas já sabia estar celestial. Enfeitou o prato com capricho e o guardou muito bem guardado para àquela tarde.
Abriu a casa, como de costume. O expediente correu normal. Por volta das 5 da tarde, chegou Arribanor.
Sentou-se numa mesa na varanda, que era mais fresco e podia-se olhar o mar. Comeu de entrada sopa de vôngoles, depois uma salada de pitus cor-de-rosa, com acelga, aipo, pimentão amarelo e creme de ricota. Deliciou-se com uma lula flambada em vinagrete com endívias frescas. Tomou do melhor vinho da casa. Por fim, a sobremesa. O chef antecipou-se ao cliente e trouxe o acepipe. “Cortesia da casa, para um cliente tão fiel” – disse Malabarr.
Arribanor sorriu. Nunca recusaria um doce, quanto mais um vindo de Monsier M. Pegou a colher e já na primeira garfada sentiu a primazia do sabor. Comeu-o em dois tempos, e refestelou-se do paladar.
Parabenizou o chef, que o convidou para uma volta pela orla. Já era noite. Em Alcora, o dia dormia cedo e por volta das seis hora, as estrelas mais lindas podiam ser vislumbradas.
Malabarr estava ansioso. Mas tentou manter a calma. Não falaria nada até estarem bem afastados de qualquer presença humana. Pelo caminho, Arribanor só falava nas delícias da cidade, paisagens, senhoritas e a culinária de Monsier.
Quando já chegavam perto das pedras no fim da praia da Lua Clara, Malabarr parou. Pediu que o ex-pupilo parasse, e este obedeceu. Daí por diante, foi uma sucessão de desabafos, tão grandes, mas tão grandes, que não caberiam neste conto.
Falou sobre traição, frustação, decepção e fuga. Sobre os 8 mil quilômetros de estrada e da mais quilométrica agonia que sentia. Dicertou sobre Alcora e sua singularidade bucólica, sobre solidão e libertação. Até que falou na troca.
Sim, Malabarr decidiu trocar de lugar com Arribanor. Adorava sua vida de chefe, mas nada se comparava a sua vida de Mago. E como ninguém nunca tinha visto seu rosto, seria perfeito.
Trocaram as roupas, Arribanor colocou a máscara. Malabarr, que já tinha tudo planejado, lorgou seus bens mais preciosos embaixo da pontezinha que saía da cidade.
Instruiu o enfeitçado de que agora ele seria Monsier M., homem sem passado, chef do melhor dentre os melhores restarantes de todo o continente. Só tiraria a máscara quando não houvesse ninguém. Não lembraria mais de seu passado além da vida em Alcora.
E quando Arribanor, fantasiado, se foi, Malabarr pegou a estradinha. Tinha toda uma vida para recuperar, e oito mil km para retornar.
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